INTRODUÇÃO
Neste artigo serão identificados: a natureza do conflito cósmico, os elementos envolvidos nesse conflito, o papel da lei divina na controvérsia, a natureza de um ser, aparentemente controvertido, Miguel o arcanjo e a razão do sofrimento humano. Obtidas as informações necessárias sobre a luta entre o bem, é possível compreender o papel da lei divina no grande conflito, e valorizar ainda mais o caráter salvífico da missão de Cristo.
Lúcifer no Jardim do Éden
É mister atentar para o relato sagrado sobre o desenrolar do conflito cósmico. A Bíblia não relata quando ocorreu a queda de Lúcifer, mas informa quanto às suas motivações e os elementos envolvidos na controvérsia. No livro de Ezequiel está retratada, na figura tipológica do rei de Tiro, contra quem e contra o que se voltou a rebelião luciferiana. O profeta descreve o surgimento, o amadurecimento e a consumação da rebelião:
Estavas no Éden, jardim de Deus; de todas as pedras preciosas te cobrias: o sárdio, o topázio, o diamante, o berilo, o ônix, o jaspe, a safira, o carbúnculo e a esmeralda; de ouro se te fizeram os engastes e os ornamentos; no dia em que foste criado, foram eles preparados. Tu eras querubim da guarda ungido, e te estabeleci; permanecias no monte santo de Deus, no brilho das pedras andavas. Perfeito eras nos teus caminhos, desde o dia em que foste criado até que se achou iniqüidade em ti. Na multiplicação do teu comércio, se encheu o teu interior de violência, e pecaste; pelo que te lançarei, profanado, fora do monte de Deus e te farei perecer, ó querubim da guarda, em meio ao brilho das pedras. Elevou-se o teu coração por causa da tua formosura, corrompeste a tua sabedoria por causa do teu resplendor; lancei-te por terra, diante dos reis te pus, para que te contemplem. Pela multidão das tuas iniqüidades, pela injustiça do teu comércio, profanaste os teus santuários; eu, pois, fiz sair do meio de ti um fogo, que te consumiu, e te reduzi a cinzas sobre a terra, aos olhos de todos os que te contemplam. Todos os que te conhecem entre os povos estão espantados de ti; vens a ser objeto de espanto e jamais subsistirás.[1]
O Éden referido no verso 13 é a habitação de Deus, lugar associado à glória e grandeza (Ez 31:18), e símbolo de fertilidade (Is 51:3; Ez 36:35; Jl 2:3). O paralelismo de Isaías 51:3 coloca o Éden como sinônimo de “jardim do SENHOR”. Em Ezequiel 28:13, “jardim de Deus” é o aposto de “Éden” e está localizado no “monte santo de Deus” (Ez 28:14, 16) de onde Lúcifer foi lançado. Trata-se, portanto, do Céu (2Cr 6:21, 30, 33, 39; 30:27).
O verso 13 também descreve a exuberância de Lúcifer retratando o seu revestimento de pedras preciosas, o que demonstra a sua importância e “a enumeração dessas várias jóias enfatizam a posição exaltada daquele que, depois de Cristo, era o mais honrado no céu.”[2] Há duas informações dignas de nota nos verso 13. A primeira indica tratar-se de um ser criado. A segunda, a sua retratação utilizando elementos ligados ao mais solene da liturgia do santuário. As pedras preciosas são as mesmas que compunham o peitoral do sumo sacerdote (Ex 28:17; 39:8-14).
E no verso 14, a expressão “querubim da guarda”, remete ao mais sagrado do santuário. A arca da aliança no santo dos santos era ladeada por dois querubins de ouro, uma representação dos querubins que assistem na presença de Deus (Ex 25:20; Sl 80:1). Além disso, era “ungido”. Como ocorria na liturgia do santuário terrestre com os sacerdotes, cuja unção acontecia com um óleo especial (Ex 30:22-25; 40:13-15).
Essa descrição forte deixa transparecer a magnitude e singularidade desse ser, então luminoso. Por isso, no verso 15 o profeta retrata Deus falando de Lúcifer como “perfeito (tāmîm [Mymt])[3] eras nos teus caminhos, desde o dia em que foste criado”. Neste verso é repetida a afirmação de que se trata de um ser criado em quem “se achou iniquidade”.
A Lei de Deus no Centro do Conflito
A natureza do conflito cósmico é determinada pelo entendimento desse processo de transição, através de quatro expressões utilizadas pelo profeta nos versos 15 e 16: “iniquidade” (‘āwelâtah [htlwe]),[4] “multiplicação do seu comércio”, “encheu o teu interior de violência” e “pecaste” (vatehettā [ajxtw]).[5] A expressão “iniquidade” e “pecado” são usadas intercambiavelmente no Novo Testamento com o sentido de “quebra da lei” de Deus (1Jo 3:4).
A Almeida Revista e Atualizada verte o texto assim: “o pecado é a transgressão da lei”; e a Almeida Revista e Corrigida, dessa maneira: “o pecado é iniqüidade”, tradução do grego, e amartia estin e anomia [h amartia estin h anomia]. O termo anomia é uma junção do prefixo de negação a com o substantivo nómos (lei),[6] ou seja, “transgressão da lei”. O termo iniquidade em Português significa falta de equidade, que por sua vez, quer dizer: “Sentimento de justiça avesso a um critério de julgamento ou tratamento rigoroso e estritamente legal.”[7]
Sumariando, um dos problemas de Lúcifer foi com a lei de Deus, a lei que imperava no Céu, no “monte santo”. Lei que não apenas trata da “disposição de reconhecer igualmente o direito de cada um”,[8] mas “é tão sagrada como Ele [Deus] próprio”[9] (Sl 111:7-8). O que foi revelado através de Ezequiel também é visto em outras porções da Bíblia.
Em Apocalipse 12:3-4, João contemplou “um dragão, grande, vermelho” (o diabo, v. 9). “A sua cauda arrastava a terça parte das estrelas do céu, as quais lançou para a terra”. Na imagem pictórica apocalíptica, estrelas com frequência representam anjos (Jó 38:7; Is 14:12). O instrumento usado por Lúcifer para ludibriar a terça parte dos anjos foi “a sua cauda”.
Cauda é um termo simbólico diretamente relacionado com desobediência à lei de Deus: “O SENHOR te porá por cabeça e não por cauda; e só estarás em cima e não debaixo, se obedeceres aos mandamentos do SENHOR, teu Deus, que hoje te ordeno, para os guardar e cumprir” (Dt 28:13). A “cauda” está virtualmente conjugada à mentira: “o profeta que ensina a mentira é a cauda” (Is 9:15).
Portanto, Lúcifer usou argumentos mentirosos (Jo 8:44), mas convincentes sobre a lei de Deus e contra ela. E até certo ponto, obteve êxito, pois convenceu uma parcela dos anjos e depois, dos homens, de que a lei de Deus não é necessária, no todo ou em parte. Isso é explicado pela expressão, “na multiplicação do teu comércio”. Comércio pressupõe compra e venda, mas não se trata aqui de objetos, mas de ideologia, vendida por aquele que se tornaria o arquienganador, e comprada pelos anjos que se tornariam demônios e posteriormente, por homens transformados em “falsos profetas”.
A Identidade de Miguel no Conflito Cósmico
Contudo, a motivação do anjo caído é explicada pela “violência” do seu interior. O desenrolar do conflito cósmico explica que esta hostilidade era voltada contra Cristo, pois é o representante da divindade que confronta Satanás no campo de batalha espiritual. Antes da encarnação, ele aparece na figura pictórica do arcanjo Miguel:[10] Tendo em vista que Lúcifer pretendia ser “semelhante ao Altíssimo” (Is 14:12-14), o nome Miguel, uma pergunta que sugere a sua relação com a divindade, é também uma reprovação ao anjo caído. Quem é como Deus, senão Cristo?
Miguel é retratado expulsando Satanás e seus anjos do Céu (Ap 12:7-9), lutando contra o “rei da Pérsia” [um símbolo do anjo mal][11] (Dn 10:13, 21), defendendo o povo de Deus no tempo de angústia, no fim do qual “muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão” (Dn 12:1-2). E somente Deus tem o poder de ressuscitar, mas Miguel aparece na disputa com Satanás pelo corpo de Moisés (Dt 34:6; Jd 9) que é contemplado já ressuscitado na transfiguração de Jesus (Mt 17:1-3).
Paulo descreve Jesus descendo do céu “com alarido, e com voz de arcanjo, e com a trombeta de Deus”. A voz de arcanjo é uma inferência da presença de Miguel como vista em Daniel 12:1-2, pois, “os que morreram em Cristo ressuscitarão” (1Ts 4:16 ARC). E na sua carta aos coríntios, aludindo ao mesmo episódio, escreve: “ao ressoar da última trombeta. A trombeta soará, os mortos ressuscitarão incorruptíveis” (1Co 15:52). A mesma trombeta tocada por Jesus com voz de arcanjo em 1 Tessalonicenses 4:16.
O Conflito Cósmico e o Sofrimento Humano
Portanto, Miguel é uma representação pictórica de Jesus contra quem Satanás dirigiu o seu ódio, a sua violência interior. Dessa maneira, os dois objetos da aversão de Satanás são: a lei de Deus e Cristo. E, consequentemente, os Seus seguidores.
Tendo em vista a luta desencadeada pelo conflito cósmico, a origem da pobreza, da perda e da doença não pode ser simplesmente atribuída diretamente ao mal,[12] ou ao inferno,[13] isentando a quem está em Cristo dessas condições, conforme afirmam os líderes neopentecostais.
Logo no começo de sua narrativa, a Bíblia trata da dor gerada pela Queda do homem. Passaria a experimentar fadigas (Gn 3:17), a terra produziria “cardos e abrolhos”, mas dela o homem teria que tirar o seu sustento (v. 18), “no suor do rosto”, e finalmente experimentar a morte (v. 19). A mulher teria mesclada à alegria de dar a luz, o sofrimento físico da gravidez e a dor do parto (v. 16). Toda a natureza entrou num processo de sofrimento devido à Queda (Rm 8:18-23).
Felizmente, a Bíblia termina a sua narrativa retratando a Terra renovada, apropriadamente revestida de delícias para a habitação da humanidade redimida. Nela não haverá mais desconforto provocado pelas agruras da sobrevivência, nem a dor do parto e nem a separação causada pela morte (Ap 21:1-4; 22:1-5).
O problema do sofrimento desencadeado pela doença, pela pobreza ou outros fatores, está diretamente relacionado com a condição humana caída. Os elementos entrelaçados com a existência humana como atenuantes ou agravantes, são: Deus, o Criador; o Diabo, o adversário; o próprio homem e o planeta.
A primeira causa da desventura humana foi o pecado, o causador, o príncipe das trevas, e o homem, a vítima. Porém, não vítima inconsciente, pois foi advertido sobre o mal, quando ainda em estado de pureza (Gn 2:15-17). A queda do homem foi o fracasso em atender a Deus, por isso, agora precisa aprender a obediência.
CONCLUSÃO
O pecado, a transgressão à lei moral de Deus, nasceu no coração de um anjo perfeito que se corrompeu. A inveja contra Cristo encheu o seu coração, e devido à sua sabedoria, usando de artifícios ardilosos, convenceu a terça parte dos anjos do Céu a se tornarem pecadores assim como ele.
A rebelião contra a lei divina e contra Cristo continuou na Terra, razão pela qual existe tanto sofrimento e dor. Satanás prolonga a sua luta contra o Céu atingindo aos filhos de Deus que estão bem no centro do conflito. Contudo, as dores infligidas contra os crentes os tornam ainda mais decididos a obedecerem aos reclamos da lei divina. Pois, sabem que no futuro a Terra será renova e revestida de delícias, e se tornará o lar dos remidos!
Este artigo é parte dos argumentos da tese doutoral do autor, compreendendo as páginas 378-385.
Pr. Josimir Albino do Nascimento, Doutor em Teologia Pastoral
[1] Ezequiel 28:13-19.
[2] “every preciuos stones” [Ez 28:13], SDABC, 4:676.
[3] “Aquilo que é eticamente direito, correto”. Ver: J. Barton Payne, “tāmîm”, DITAT, 1647-1649.
[4] De ‘āwel, ‘āwlâ – injustiça, iniquidade, “um ato ou feito contra aquilo que é correto... comportamento que se opõe ao caráter divino”; Ibid.; “‘āwel, ‘āwlâ”.
[5] De hātā – errar, sair do caminho, pecar, tornar-se culpado; Ibid., “hātā’’.
[6] Ver: Moulton, “anomia” e “nómos”, AGLR, 31.
[7] Ver: Ferreira, “iniquidade” e “equidade”, DAEXXI.
[8] Ibid.
[9] Ellen G. White, Patriarcas e profetas (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, s. d.), 40. 1CD-Rom.
[10] Miguel significa, “Quem é como Deus?”. Ver: Miller and Miller, Haper’s Bible Dictionary, “Michael”.
[11] William H. Shea, The Abundant Life Bible Amplifier: A Practical Guide to Abundant Christian Living in the Book of Daniel 7-12, George R. Knight, ed. (Boise, ID: Pacific Press Publishing Association, 1996), 172.
[12] Edir Macedo, Como fazer a obra de Deus, 11.
[13] Ibid., Fé e dinheiro: o dinheiro é a raiz de todos os males?, 11, 12.
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